Com a tese fixada, a Segunda Seção confirma a adoção da vertente objetiva da actio nata, em linha com a aplicação da regra do droit de saisine corporificada no art. 1.784 do Código Civil.
Em 22.5.2024, a Segunda Seção do STJ, sob o rito dos recursos repetitivos, por unanimidade, definiu a seguinte tese repetitiva: “O prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, cuja fluência não é impedida, suspensa ou interrompida pelo ajuizamento de ação de reconhecimento de filiação, independentemente do seu trânsito em julgado”[1].
Na ocasião foram julgados o REsp 2.029.809/MG e o REsp 2.034.650/SP, ambos de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, que foram identificados pela Comissão Gestora de Precedentes como representativos de controvérsia afetados pela Segunda Seção do STJ para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos visando à definição da seguinte questão[2]: “definir o termo inicial do prazo prescricional da petição de herança proposta por filho cujo reconhecimento da paternidade tenha ocorrido após a morte” do pai. Em suma, o STJ se propôs a definir se o marco inicial da prescrição se daria a partir da abertura da sucessão ou, ao revés, tão-somente após o trânsito em julgado da ação relativa ao estado de filiação.
Em 6.6.2023, os Ministros da Segunda Seção do STJ, por unanimidade, acordaram em afetar o REsp 2.029.809/MG e o REsp 2.034.650/SP ao rito dos recursos repetitivos, para delimitar a referida tese controvertida. Além disso, também por unanimidade, acordaram em determinar a suspensão dos recursos em segunda instância ou no âmbito do STJ que versassem sobre a mesma questão jurídica.
REsp n. 2.029.809/MG
O REsp n. 2.029.809/MG tem origem em ação de investigação de paternidade post mortem, cumulada com pedido de petição de herança, que, em 1ª instância, foi julgada parcialmente procedente, em sentença na qual se declarou a existência do vínculo paterno-filial e o direito da requerente à herança.
Porém, contra essa sentença que declarou a filiação e o direito à herança, foi interposta apelação, na qual suscitou-se a prescrição da petição de herança. Contudo, o TJMG, invocando o que parte da doutrina e da jurisprudência tem identificado como uma vertente subjetiva da teoria da actio nata, negou provimento ao recurso, sob o entendimento de que o prazo prescricional para ajuizamento da ação de petição de herança somente começaria a correr com o reconhecimento da filiação, ao argumento de que apenas a partir desse momento é que o direito efetivamente poderia ser exercitado.
No julgamento da apelação, embora o TJMG tenha destacado a Súmula nº 149 do STF, que determina que “a ação de investigação de paternidade é imprescritível, mas não o é a de petição de herança”, prevaleceu o entendimento de que o termo inicial do decênio prescricional seria o trânsito em julgado da ação de reconhecimento da condição de herdeiro do requerente.
O acórdão, então, foi alvo do recurso especial que trouxe a matéria ao STJ, pelo qual os recorrentes, em suma, baseando-se em julgado da Quarta Turma do STJ (AREsp 479.648/MS)[3], alegaram que o prazo prescricional em questão começaria a fluir a partir da abertura da sucessão, momento em que nasceria, para todos os herdeiros, o direito de herança, independentemente destes herdeiros estarem ou não reconhecidos como tais quando da morte do de cujus.
REsp n. 2.034.650/SP
- O REsp n. 2.034.650/SP, por sua vez, tem origem em ação declaratória de reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem cumulada com pedido de petição de herança, que, em 1ª instância, foi objeto de decisão que extinguiu a ação com relação ao pleito ligado à petição de herança, ante o reconhecimento da fluência do prazo prescricional, sob entendimento de que o início da contagem da prescrição para a propositura do pleito de petição de herança dar-se-ia na data da abertura da sucessão, em respeito ao princípio da saisine[4].
- Uma vez reconhecida a prescrição quanto à petição de herança e extinta a ação em relação a este pedido, foi interposto agravo de instrumento, ao qual o TJSP negou provimento, sob entendimento de que admitir outro prazo que não seja o da abertura da sucessão resultaria, na prática, na imprescritibilidade da petição de herança, o que não poderia se admitir em razão do entendimento disposto na supracitada Súmula nº 149 do STF.
- O acórdão, então, foi alvo do recurso especial que levou o caso ao STJ, pelo qual o requerente, em resumo, sustentou que a ação de petição de herança seria imprescritível, podendo, portanto, ser intenta a qualquer tempo e, subsidiariamente, que, no caso concreto, eventual prazo prescricional deveria ser contado da “data do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha nos autos do inventário”.
Proposta de Afetação dos Recursos
Nos julgamentos das propostas de afetação dos recursos especiais, o Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze destacou que a Segunda Seção do STJ, por ocasião do julgamento do EAREsp n. 1.260/MG[5], dissipou a divergência então existente entre as suas turmas de Direito Privado.
Ocorre que, enquanto a Terceira Turma adotava a vertente subjetiva da teoria da actio nata para acolher o posicionamento de que o termo inicial para o ajuizamento da petição de herança seria a data do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade[6], a Quarta Turma seguia, com base na vertente objetiva da actio nata, o entendimento de que o termo inicial do prazo prescricional da pretensão de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, ocasião na qual nasce para o herdeiro, ainda que não reconhecido como tal, o direito de reivindicar os seus direitos sucessórios[7].
Então, diante da divergência, no julgamento do EAREsp n. 1.260.418/MG, a Segunda Seção do STJ, por maioria dos votos, dirimiu o desencontro entre as Turmas, para compreender que o prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, aplicada a corrente objetiva acerca do princípio da actio nata (arts. 177 do CC/1916 e 189 do CC/2002[8]).
Contudo, mesmo após o julgamento que pacificou a questão, conforme assinalado à época pelo Presidente da Comissão Gestora de Precedentes, a controvérsia continuou ascendendo ao STJ.
Diante do cenário de persistência de recursos especiais e agravos versando sobre a mesma questão na Corte e de decisões divergentes nas instâncias inferiores, o Relator Ministro Bellizze entendeu adequada a afetação dos recursos especiais como representativos de controvérsia, a fim de se fixar tese jurídica com força vinculativa, de modo a prestigiar-se a isonomia e a segurança jurídica.
Tema 1.200
No julgamento do Tema 1.200, os Ministros da Segunda Seção do STJ, por unanimidade, aprovaram tese no sentido confirmar o entendimento antes firmado pelo próprio STJ no julgamento do EAREsp n. 1.260.418/MG.
Em seu voto, o Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze relembrou que a Segunda Seção, por ocasião do EAREsp 1.260.418, da Relatoria do Ministro Antônio Carlos Ferreira, julgado em outubro de 2022, dissipou a intensa divergência que havia entre as turmas de direito privado, para entender que o prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, aplicada a vertente objetiva do princípio da actio nata, adotada como regra no ordenamento jurídico nacional.
Segundo o que consignou o Ministro e, anteriormente, a Segunda Seção, a teoria da actio nata em sua vertente subjetiva tem aplicação em situações absolutamente excepcionais apresentando-se, pois, descabida sua adoção no caso de pretensão de herança, em atenção notadamente às regras sucessórias postas.
Ocorre que, com base nos arts. 1.784[9]e 1.798[10] do Código Civil, a Segunda Seção firmou o entendimento de que, independentemente do reconhecimento oficial da condição de herdeiro, ao pretenso filho/herdeiro é facultada, desde logo, a postulação de seus direitos hereditários, por meio de três maneiras; 1) propor ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança; 2) propor concomitantemente, mas em processos distintos, ação de investigação de paternidade e ação de petição de herança, caso em que ambas poderão tramitar simultaneamente, ou se poderá suspender a petição de herança até o resultado do julgamento da investigatória; e 3) propor ação de petição de herança na qual deverão ser discutidas na esfera das causas de pedir a efetiva paternidade do falecido e a violação do direito hereditário.
Desse modo, na linha do que preceitua a Súmula nº 149 do STF, reputou-se insubsistente a alegação de que a pretensão de reivindicar os direitos sucessórios apenas surgiria a partir da decisão que reconhece a qualidade de herdeiro, uma vez que a imprescritibilidade da pretensão do reconhecimento do estado de filiação não poderia conferir ao pretenso filho ou herdeiro a prerrogativa de escolher o momento em que postularia em juízo a pretensão da petição de herança, sob pena de tornar imprescritível pretensão de natureza ressarcitória e contrariar a almejada estabilização das relações jurídicas.
Assim, sob o entendimento exposto, o Ministro Relator voto por fixação da tese repetitiva nos seguintes termos: “O prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura de sucessão, cuja fluência não é impedida, suspensa ou interrompida pelo ajuizamento de ação de reconhecimento de filiação, tão pouco pelo seu resultado definitivo”.
A Ministra Nancy Andrighi, então, sugeriu que a tese fosse modificada para constar “independentemente do seu trânsito em julgado” no lugar de “tão pouco pelo seu resultado definitivo”, por considerar o primeiro termo mais técnico.
A sugestão foi acolhida pelos demais Ministros e o resultado do julgamento foi proclamado: a Segunda Seção, por unanimidade, negou provimento aos dois recursos especiais e aprovou a seguinte tese no Tema 1.200: “O prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, cuja fluência não é impedida, suspensa ou interrompida pelo ajuizamento de ação de reconhecimento de filiação, independentemente do seu trânsito em julgado.”.
O entendimento fixado e já anteriormente firmado pela Segunda Seção, conforme salientado pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, foi acolhido pela Comissão de Atualização do Código Civil designada pelo Senado Federal, que possui, como uma de suas expressas funções, a incorporação da jurisprudência sedimentada nas Cortes Superiores.
No Anteprojeto de Reforma do Código Civil apresentado ao Plenário do Senado Federal, a Comissão aprovou proposta de modificação do art. 1.824 do atual Código Civil para que o entendimento firmado pela Segunda Seção do STJ passe a constar expressamente na nova redação, por meio dos seguintes possíveis novos parágrafos:
“§ 1º O prazo de prescrição da pretensão de petição de herança tem como termo inicial a abertura da sucessão.
2º O prazo previsto no § 1º não se interrompe nem se suspende com a propositura de ação de investigação de paternidade, de declaração de paternidade socioafetiva ou com o nascimento do filho havido após aquela data com o emprego de técnica de procriação assistida.”
Embora a proposta apresentada, que pode incorporar o avanço da jurisprudência quanto ao termo inicial do prazo prescricional para a ação de petição de herança, ainda não tenha sido debatida e votada pelos senadores, a fixação da tese no Tema 1.200 constitui feito de relevo, por permitir maior uniformidade e previsibilidade na resolução dos litígios sucessórios.
[1] STJ, REsp 2.029.809-MG, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 22/5/2024. (Tema 1200). STJ, REsp 2.034.650-SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 22/5/2024 (Tema 1200).
[2] STJ, ProAfR no REsp n. 2.029.809/MG, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 6/6/2023. STJ, ProAfR no REsp n. 2.034.650/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 6/6/2023.
[3] STJ, AgInt no AREsp n. 479.648/MS, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 10/12/2019.
[4] “No direito sucessório, momentos logicamente sequenciais são considerados simultâneos: com o óbito, nasce o direito hereditário e a herança é devolvida e transmitida aos herdeiros, sendo a aceitação ato apenas confirmatório (CC, art. 1.804). Desse modo, em razão do droit de saisine, a transmissão hereditária ocorre automaticamente com a abertura da sucessão. Não há necessidade de ato algum do adquirente e ocorre mesmo sem que o sucessor saiba da abertura da sucessão.” (TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do direito civil: direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021).
[5] STJ, EAREsp n. 1.260.418/MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 26/10/2022.
[6] REsp n 1.475.759/DF, Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 20/5/2016; REsp 1.368.677/MG, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 05/12/2017, DJe 15/2/2018; AgInt no AREsp 1.273.921/GO, Rel. Ministro Moura Ribeiro, julgado em 14/8/2018, DJe 30/8/2018; e AgInt no REsp 1.695.920/MG, desta relatoria. julgado em 22/5/2018, DJe 1/6/2018
[7] AgInt no AREsp n. 1.430.937/SP, Relator Ministro Raul Araújo, DJe 6/3/2020, e AgInt no AREsp n. 479.648/MS, Relator Ministro Raul Araújo, DJe 6/3/2020
[8] Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos, as reais em 10 (dez), entre presentes, e entre ausentes, em 15 (quinze), contados da data em que poderiam ter sido propostas.
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.
[9] Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
[10] Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.