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A revisão judicial das decisões proferidas por dispute boards: Caso “Linha 4 – Amarela” do Metrô de São Paulo

Por Alberto Lucas Albuquerque da Costa Trigo e Marina Fernandes de Oliveira
Para o Portal Migalhas

Este breve artigo tem um objeto simples: tratar de caso icônico envolvendo relevantíssimo método de resolução de disputas. Serão delineadas as razões que motivaram a previsão de dispute board no contrato para construção da “Linha 4 – Amarela” do Metrô de São Paulo, as controvérsias técnicas que surgiram e as consequências da decisão do comitê.

Os contratos envolvendo construção e infraestrutura trazem obrigações de grande complexidade técnica e operacional, o que exige que eventuais conflitos que surjam durante sua execução sejam solucionados de forma rápida e dinâmica, evitando a paralisação de projetos de longa duração ou o surgimento de vícios construtivos.

Durante a execução de contratos de construção, frequentemente surgem controvérsias técnicas que devem ter endereçamento específico. Embora evidente a divergência, não se afigura razoável a propositura de ação judicial e/ou a instauração de arbitragem, já que as partes têm interesse na manutenção da relação – que se prolonga no tempo.
Nesse contexto, o instituto do dispute board surge como método extrajudicial de prevenção e resolução de conflitos que eventualmente surjam durante a execução de contratos complexos, buscando oferecer soluções a controvérsias técnicas .

A finalidade do dispute board, portanto, é trazer solução imparcial e técnica, já que o comitê é normalmente formado por integrantes com profunda especialização, sem necessidade de que seja proposta ação judicial e/ou instaurada arbitragem, preservando-se a relação subjacente.

O instituto foi, de forma pioneira no Brasil, reconhecido na Lei Municipal nº 16.873/2018, de São Paulo, que regulamentou a instalação de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas em contratos administrativos continuados celebrados pela Prefeitura de São Paulo.

Em nível nacional, em 2021, com a edição da Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), veiculou-se a previsão de “comitês de resolução de disputas”, em seus artigos 151, 153 e 154 .

O dispute board depende de previsão contratual, e, portanto, encontra seu fundamento na autonomia de vontade das partes, bem como no pacta sunt servanda, o que faz com que seja cláusula de cumprimento obrigatório pelos subscritores do contrato.

Diante disso, as partes podem deliberar sobre as regras e procedimentos que devem ser seguidos pelo dispute board, o que inclui a quantidade de membros do colegiado técnico e a definição do caráter vinculante ou não das decisões proferidas.
Daí, surgem as principais modalidades de dispute boards, já previstas, por exemplo, no regulamento da Câmara de Comércio Internacional e na Lei Municipal nº 16.873/2018, de São Paulo.

O Dispute Review Board (DRB) ou Comitê por Revisão apresenta recomendações que não são vinculantes às partes. Já o Dispute Adjudication Board (DAB) ou Comitê por Adjudicação, profere decisões que estabelecem obrigações de cumprimento contratualmente vinculante pelas partes , não dependendo de qualquer tipo de homologação.

Por fim, o Combined Dispute Board ou Comitê Híbrido é aquele cuja natureza é mista, contendo tanto dispositivos vinculantes quanto recomendações.

No Brasil, o instituto do dispute board foi aplicado pela primeira vez no contrato administrativo que instituiu a Linha 4 – Amarela do Metrô da Cidade de São Paulo, decorrente do Contrato de Concessão nº 4107521301, coincidindo também com a primeira Parceria Público-Privada (PPP) nacional.

A criação de uma cláusula que instituísse o dispute board – ou, como chamado naquele instrumento contratual, o Conselho de Resolução de Disputas (CRD), conforme cláusula 20.2 do Contrato –, foi um requisito exigido pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) para aprovação do financiamento do projeto.

O Contrato da Linha 4 – Amarela do Metrô estabeleceu, em sua cláusula 20.2, que eventuais litígios decorrentes deveriam ser enviados a um Conselho de Resolução de Disputas, composto por um ou três membros admitidos por ambas as partes, cujas decisões teriam efeito vinculante, obrigacional.

A cláusula 7.10.4 do Termo de Acordo do Conselho de Resolução de Disputas assegura que “a decisão do Conselho somente deixará de ser exigível pelas Partes quando for notificada ou revisada, integral ou parcialmente, por meio de um acordo ou de um laudo arbitral ou sentença judicial”, o que significa que as decisões proferidas pelo CRD do Metrô são vinculantes e podem ser submetidas à apreciação do Poder Judiciário, que poderá confirmá-las ou reformá-las.

As partes do contrato podem também definir formas de revisão das decisões proferidas pelo dispute board, caso constatem ilegalidade, seja internamente, por meio do próprio comitê de resolução de conflitos, seja pelas vias arbitral ou judicial.

Na hipótese de revisão judicial, a decisão contratual e vinculante proferida pelo dispute board torna obrigatório seu cumprimento pela parte vencida “enquanto não houver provimento jurisdicional que suspenda a sua eficácia, devendo, por isso, ser cumprida”.

No Brasil, ainda há poucos processos judiciais – e públicos – envolvendo a revisão de decisões proferidas por dispute boards. Relevante caso a ser estudado é exatamente aquele extraído de disputa envolvendo a Linha 4 – Amarela do Metrô.
Em março de 2018, foi proposta ação pela Companhia do Metropolitano de São Paulo (“Metrô”) em face do Consórcio TC – Linha 4 – Amarela perante a 12ª Vara da Fazenda Pública do TJSP, objetivando suspender decisão proferida pelo Conselho de Resolução de Disputas decorrente do Contrato nº 4107521301. O Conselho entendeu existir obrigação de se pagar ao Consórcio remuneração em razão de (i) falha e demora na comunicação do Metrô sobre a contaminação do solo; (ii) suposta mistura do solo contaminado com solo limpo; e (iii) opção pelo sistema de coprocessamento em detrimento da dessorção térmica (processo nº 1014265-98.2018.8.26.0053).

Em primeiro grau, foi proferida decisão que concedeu a liminar pleiteada pelo Metrô para que fosse suspensa a eficácia da decisão vinculante proferida pelo Conselho, desobrigando a parte autora ao pagamento de multa por contaminação do solo.

Interposto agravo de instrumento pelo Consórcio da Linha 4 – Amarela em face da referida decisão (Agravo de Instrumento nº 2096127-39.2018.8.26.0000), a 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento ao agravo de instrumento, revogando a liminar anteriormente deferida e, consequentemente, mantendo a obrigação de pagamento de multa imposta ao Metrô , prestigiando a decisão do Conselho.

Na ocasião, o relator, Desembargador Torres de Carvalho, entendeu que a interferência judicial nas decisões proferidas pelo dispute board deve se dar com moderação e apenas em casos que fujam à normalidade, “para que a resolução amigável não se torne uma fase sem sentido ou eficácia ou que a vinda a juízo não represente mais que inconformismo com uma decisão fundamentada e, ao seu modo, correta”. E, no caso, não foi demonstrado motivo específico para inobservância do Edital e do contrato.

O referido acórdão foi mantido pelo Superior Tribunal de Justiça.

No momento, a ação se encontra em fase probatória, pendente a finalização dos trabalhos periciais para constatação de eventual descumprimento da prestação do serviço pelo Metrô em relação à destinação de solo.

Passados mais de 7 (sete) anos desde a distribuição da ação judicial, a decisão do Comitê ainda não foi confirmada definitivamente – o que parece infirmar o propósito do dispute board, que gravita em torno da simplificação da análise de questões técnicas que surjam durante a execução contratual, evitando-se a judicialização prematura.

As consequências da judicialização precoce são claras.

Primeiro, esvazia-se a confiabilidade das decisões proferidas pelos disputes boards, que normalmente detêm expertise técnica para análise das controvérsias que surgem durante a execução contratual. O dinamismo dos contratos de infraestrutura exige que as decisões proferidas sejam imediatamente acatadas pelas partes, possibilitando o desenvolvimento regular das obras, sendo a judicialização, nesses casos, excepcional.

Segundo, a revisão judicial pode representar sacrifício relevante da eficiência e da celeridade, valores relevantíssimos quando diante de controvérsias técnicas que surjam durante a execução de contratos de infraestrutura. Bem se sabe que a celeridade não é valor absoluto do processo, mas não se pode negar que, em algumas circunstâncias, impõe-se o encaminhamento expedito das controvérsias, de modo que se possa dar sequência à relação – como é o caso da execução de obras complexas.

Terceiro, a produção de prova pericial em ação judicial também se afigura controversa, eis que significa, ao fim e ao cabo, a substituição das conclusões de técnicos escolhidos pelas partes, normalmente dotados de profunda capacidade de análise das circunstâncias contratuais, por perito nomeado pelo juízo, que, por vezes, pode não ter a familiaridade necessária com as questões debatidas.

Algumas soluções podem ser propostas, sobretudo para que se evite o desnecessário prolongamento das disputas perante o Poder Judiciário.
A primeira gravita em torno da celebração de promessa de não processar, excluindo qualquer possibilidade de reanálise da decisão técnica tomada pelo Conselho. Trata-se de renúncia expressa à pretensão de direito processual que poderia surgir como efeito da solução trazida pelo Comitê, perfeitamente possível quando diante de partes capazes que tenham a capacidade técnica e econômica de tomar referida decisão no âmbito da celebração do contrato.

A segunda solução é a previsão de arbitragem expedita especificamente para tratar das decisões técnicas do Comitê. Aqui, é importante que se veicule previsão diferente da cláusula compromissória em seu formato tradicional, sobretudo para dissuadir as partes de controverterem todo o contrato. Lembre-se que a intenção é a continuidade do vínculo, e não sua dissolução.

A terceira, que endereça especificamente a questão da prova pericial produzida perante o Poder Judiciário, envolve ex ante a escolha consensual do perito, tal qual prevista no art. 471 do Código de Processo Civil . É mais fácil lançar mão da fase pré-litigiosa para definição de quem será o perito – ou empresa – que atuará em eventual processo judicial, possibilitando a escolha mais técnica possível.

Apenas se deve evitar a coincidência entre os membros do Comitê que resolveu a disputa e o perito escolhido consensualmente pelas partes, já que a ideia é possibilitar avaliação imparcial por terceiro da decisão técnica.

Enfim, especificamente no caso da Linha 4 – Amarela do Metrô de São Paulo, o dispute board surgiu como relevante mecanismo de prevenção e resolução de controvérsias técnicas decorrentes da execução do contrato. O instrumento já foi utilizado em pelo menos uma oportunidade e decorre da adoção de modelagem de contrato FIDIC.

A despeito da judicialização da decisão proferida pelo Conselho formado, a 10ª Câmara de Direito Público do TJSP enfatizou a importância de o Poder Judiciário respeitar os efeitos das decisões proferidas pelo colegiado do dispute board, diante da especificidade técnica dos temas e da qualificação dos integrantes do painel.

Em primeiro grau de jurisdição, no entanto, o prolongamento do processo, inclusive com a produção de prova pericial com vistas à (re)análise da decisão proferida pelo comitê parece frustrar o propósito do dispute board – prevenir e resolver controvérsias técnicas de modo célere e adequado, evitando a dissolução prematura do contrato celebrado.

Para que sejam evitados os efeitos prejudiciais da judicialização prematura, seria interessante refletir sobre a previsão de (i) promessa de não processar quanto à decisão proferida pelo Comitê, perfeitamente possível quando se está diante de partes com capacidade econômica e técnica; (ii) cláusula compromissória em que se preveja a possibilidade de instauração de arbitragem expedita, evitando-se que o litígio recaia sobre toda a controvérsia contratual; e/ou (iii) a escolha consensual de perito que atuará perante o Poder Judiciário, como faculta o art. 471 do Código de Processo Civil.

De forma alguma se pretende indicar que o Poder Judiciário não tenha capacidade técnica de lidar com controvérsias complexas. Muito pelo contrário. A questão é que, especificamente no caso das decisões tomadas pelos Comitês de Resolução de Disputas, deve-se evitar a judicialização prematura, exatamente porque as soluções técnicas buscam preservar a relação contratual e estão inseridas em obras de infraestrutura que se prolongam no tempo.

 

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