Bernardo Salgado, Lucas de Castro e Danilo Moraes
O PL 2.925/2023 propõe uma reforma no sistema de enforcement, com alterações na Lei da CVM (lei 6.385/76) e na Lei das S.A. (lei 6.404/76), conferindo maiores poderes a acionistas minoritários e à própria CVM, no que diz respeito a medidas de fiscalização e responsabilização de administradores e acionistas controladores. O Projeto é de iniciativa do Poder Executivo, com justificativa subscrita pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
De acordo com a sua exposição de motivos, essas alterações visam a conferir maior segurança jurídica para investidores e reduzir os custos operacionais do mercado financeiro, de modo a alinhar o Brasil às práticas adotadas pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Ainda de acordo com a manifestação do Ministro da Fazenda, o PL teria como objetivos:
i) melhorar padrões de governança corporativa no mercado de capitais;
ii) expandir a “tutela coletiva de direitos societários”;
iii) “ampliar a publicidade em processos arbitrais”, nessa mesma seara societária; e
iv) “reequilibrar incentivos econômicos e riscos” em prol dos acionistas minoritários que movam demandas voltadas à responsabilização de administradores, para, de outro lado, “limitar a exoneração de responsabilidade de administradores e fiscais na aprovação de contas”.
A concepção político-econômica por trás da proposta, em apertada síntese, parece residir nas compreensões de que: i) viriam se mostrando pouco eficientes as ferramentas atualmente previstas no ordenamento para fiscalização e responsabilização de administradores, controladores e conselheiros fiscais, tanto pela CVM quanto, principalmente, por acionistas minoritários; e, ii) o incentivo à “coletivização” e “publicização” de lides societárias – mesmo arbitrais – poderia contribuir para diminuir esse problema.
É sob esse espírito que o PL cuida, em meio a outras matérias, de cinco alterações de especial relevância:
i) Incentivo à propositura de ações por acionistas minoritários: “ação civil coletiva”, em paralelo com as class actions americanas – Art. 27-H da Lei da CVM;
ii) Possível instituição de regra de publicidade das arbitragens societárias – Art. 27-I da Lei da CVM e 109 da Lei das S.A;
iii) Ações individuais de responsabilização da sociedade controladora – Art. 246 da Lei das S.A;
iv) Extinção de exoneração automática dos administradores pela aprovação sem reservas de contas – art. 134 da Lei das S.A;
v) Ampliação dos poderes da CVM – Art. 9º da Lei 6.385/76.
Além de endurecer o regime de responsabilidade de administradores e das próprias companhias, o PL pode ter o condão de:
i) elevar consideravelmente o número de litígios societários, ao incentivar a propositura de ações por acionistas minoritários;
ii) abalar a confidencialidade dos conflitos (e até mesmo dos acordos) societários e dos processos de arbitragem envolvendo questões societárias de companhias abertas; e
iii) ampliar consideravelmente os poderes da CVM, aumentando a relevância da autarquia e de seus processos administrativos.
Atualmente, o projeto aguarda que a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados aprecie solicitação feita pelo Poder Executivo em 24.7.2023, para que o projeto tramite em regime de urgência.
CINCO PONTOS DE DESTAQUE
Os tópicos abaixo trazem algumas das principais alterações da lei e suas possíveis consequências práticas.
i) Incentivo à propositura de ações por acionistas minoritários: “ação civil coletiva”, em paralelo com as class actions americanas – Art. 27-H da Lei da CVM.
Os investidores legitimados passam a poder propor, em nome próprio e no interesse de todos os titulares de valores mobiliários de mesma espécie ou classe, uma “ação civil coletiva” de responsabilidade contra acionistas controladores e administradores.
Esse modelo se inspirou nas class actions americanas.
i.a) Legitimidade de investidores – Critérios de participação
São legitimados para tanto: i) investidores com 2,5% ou mais dos valores mobiliários da mesma espécie e/ou; ii) investidores que possuírem valor igual ou superior a R$50 milhões em ações.
Esses critérios podem ser alterados posteriormente pela CVM em função do valor do capital social da empresa.
i.b) Legitimidade de investidores – Critério temporal
A legitimidade para a propositura será aferida no momento imediatamente anterior à materialização dos danos.
Essa legitimidade é mantida mesmo com alienação posterior da participação e não se transfere, portanto, ao novo titular das cotas.
Além disso, o investidor prejudicado que atenda aos critérios de participação pode intervir no processo como litisconsorte no prazo de 30 dias da divulgação da propositura da ação.
Importante destacar que o PL também prevê a necessidade de a empresa divulgar ao mercado o ajuizamento da ação coletiva.
i.c) Efeitos da procedência
A sentença fará coisa julgada erga omnes, ou seja, atingirá todos os titulares de valores mobiliários de mesma espécie ou classe do investidor/autor, exceto os que optarem pelo ajuizamento de demandas individuais. Não há no PL nenhuma previsão de limitação territorial dos efeitos da coisa julgada.
Ademais, os réus deverão, ainda, pagar 20% de prêmio sobre o valor da indenização ao autor.
Se houver pluralidade de autores, o juiz repartirá o prêmio segundo a “contribuição” de cada um deles, o que parece abrir margem para uma distribuição equitativa sem critérios fixos – que pode acabar levando em conta também a participação acionária dos envolvidos.
Destaca-se que, atualmente, esse prêmio é estabelecido no valor de 5% do valor da causa (art. 246, §2º da Lei das S.A.). O aumento do prêmio encerraria forma de incentivar/estimular o acionista minoritário a propor ação quando vislumbrar violação da sociedade controladora de dispositivo legal ou a prática de atos que gerem danos aos acionistas.
Essa alteração visa, ainda, equalizar a exposição à alta sucumbência face aos ganhos limitados, considerando sua posição de acionista minoritário.
A execução da sentença será promovida dentro de um ano – a lei não destaca o prazo de início, mas, tomando como base a Lei das ACPs e a Lei da Ação Popular, o início do prazo se contaria do trânsito em julgado da sentença.
Caso a execução da sentença não seja promovida por número compatível com a gravidade do dano, podem os autores, o MP ou a própria CVM promover essa liquidação.
A dinâmica é basicamente idêntica à lógica do fluid recovery prevista para indenizações fixadas em ações civis públicas. Embora possa haver controvérsias, a intenção do PL parecer ser a de assemelhar esses institutos “coletivos”.
ii) Possível instituição de regra de publicidade das arbitragens societárias – Art. 27-I da Lei da CVM e 109 da Lei das S.A.
O PL permite expressamente que tais demandas coletivas sejam veiculadas em arbitragem, desde que isso se coadune com previsões de estatutos, regulamentos, escrituras e/ou instrumentos de emissão de valores – como já ocorre em muitos casos.
Todavia, a novidade é que, como regra, esses procedimentos arbitrais seriam públicos.O projeto de lei afirma, aliás, que toda arbitragem relativa a companhias abertas será, em princípio, pública. As instituições arbitrais deveriam, pois, dar publicidade a seus precedentes relativos a demandas envolvendo companhias abertas.
Para atenuar essa virada de chave, o próprio PL prevê que a publicidade deverá ser objeto de regulamentação pela CVM.Esse ponto é um dos mais controversos da lei, pois tem condão de esvaziar a utilização de arbitragem em demandas de companhias abertas, ao obrigar que todas sejam públicas. Tal previsão é consideravelmente mais abrangente que a constante da Resolução da CVM 80/2022, que trata da publicidade de demandas societárias no geral.
A novidade pode, ainda, representar desincentivo à inclusão de cláusulas de arbitragem em instrumentos societários como os estatutos sociais e, principalmente, acordos de acionistas.Atualmente, a referida Resolução 80/22 prevê a necessidade de comunicação à CVM – e, eventualmente, ao mercado – de demandas societárias em que o emissor, seus acionistas ou seus administradores figurem como partes e i) envolvam direitos difusos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos ou ii) nas quais possa ser proferida decisão cujos efeitos atinjam a esfera jurídica da companhia ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão do emissor que não sejam partes do processo.
No caso, demanda societária é todo processo judicial ou arbitral cujos pedidos estejam, no todo ou em parte, baseados em legislação societária ou do mercado de valores mobiliários, ou nas normas editadas pela CVM.O regramento vigente, contudo, prevê que o cumprimento dessas obrigações de divulgação se limite a aviso de fato relevante e não traga, necessariamente, a disponibilização do inteiro teor dos documentos relativos às demandas, prevendo, ainda, a observância de “limites de sigilo decorrente de lei”.
Embora não haja qualquer garantia de que isso ocorrerá, parece possível cogitar que o regramento atual sirva como regulamentação da do PL, caso aprovado.
iii) Ações individuais de responsabilização da sociedade controladora – Art. 246 da Lei das S.A.
O projeto de lei busca, ainda, destrinchar o procedimento de ação individual ajuizada contra acionista controlador que causar danos à companhia, demanda que, na legislação atual, é objeto de apenas dois parágrafos do art. 246 da Lei das S/A.
Como pontos relevantes dessas especificações, destaca-se a ampliação do rol de legitimados, que, pela legislação atual, se reserva a acionistas titulares de, no mínimo, 5% do capital e, nos termos do PL, passaria a exigir apenas 2,5% ou acionistas titulares de valores mobiliários avaliados em R$50 milhões ou mais no momento em que os danos teriam se materializado.
Além disso, caso essa ação de responsabilidade da controladora seja proposta individualmente por acionista(s), a companhia não poderá promover ação independente, podendo intervir no processo apenas como litisconsorte, assim como acionistas que detenham a participação mínima.
Outro aspecto que também merece destaque é o aumento do prêmio atribuído pela lei ao acionista ou conjunto de acionistas que vencerem a demanda, que passa de 5% para 20% (também devido em casos de acordo).
Desse montante do prêmio serão deduzidos honorários sucumbenciais devidos pela controladora aos advogados do vencedor – que, em princípio, passarão a ser calculados segundo os critérios gerais do CPC e não mais no patamar fixo de 20%, atualmente previsto pela redação atual da Lei das S/A.
iv) Extinção de exoneração automática dos administradores pela aprovação sem reservas de contas – art. 134 da Lei das S.A.
O projeto de lei propõe a extinção da exoneração automática de administradores prevista no art. 134, §3º, da Lei das S.A., em que se prevê que a aprovação sem reservas das demonstrações financeiras e das contas exonera de responsabilidade os administradores e fiscais, salvo erro, dolo, fraude ou simulação.
Pela proposta consubstanciada no PL, uma deliberação específica, que conste expressamente da ordem do dia, passaria a ser necessária para exonerar administradores e fiscais da responsabilidade dos atos ocorridos em sua gestão.
v) Ampliação dos poderes da CVM – Art. 9º da Lei 6.385/76
Os principais poderes conferidos à CVM pelo PL foram os poderes de: i) realizar inspeção na sede social da empresa investigada, podendo extrair ou requisitar cópias de quaisquer documentos ou dados eletrônicos; e ii) requerer ao Poder Judiciário mandado de busca e apreensão na empresa ou pessoa física investigada em inquérito ou processo administrativo. Esses poderes aumentam a relevância dos procedimentos administrativos na CVM e a própria independência desses procedimentos, que poderão ser complementados por pedidos de vista e cópias pela CVM de diferentes tipos de processos – ações judiciais, inquéritos, processos administrativos etc.
Nesse contexto, tais medidas visam a fortalecer a autoridade da autarquia, equiparando seus poderes a outros órgãos reguladores.